Religiosidade



Inicialmente, a congada, assim como outros rituais africanos, era considerada profana e, portanto, reprimida pelos donos do poder. Alguns brancos, conhecidos pelos pretos como “homens bons”, convidavam os congadeiros a dançar em suas casas para as visitas e em troca ofereciam aos componentes do grupo refeições e doces, costume perpetuado até hoje pelos festeiros. Esse fato, aliado ao surgimento das irmandades (sociedades fechadas de cunho religioso que, além de servirem como elemento ordenador da estratificação social e contendor de possíveis conflitos sociais, eram ainda um atestado de pertencimento à sociedade) fez com que os congadeiros pudessem sair da clandestinidade e ganhassem as ruas.
Reconsiderado, então, o caráter de profanação das danças e das músicas da congada, ela passou a ir até as portas das igrejas de seus santos padroeiros para prestar-lhes as devidas honrarias.
A congada, vista depreciativamente como “coisa de preto”, geralmente tinha vedada a sua entrada nos templos. Tratava-se de puro preconceito racial. Por isso, esses homens de cor ainda hoje, em algumas regiões do país, continuam assistindo às missas no mesmo lugar dos escravos de outrora: do lado de fora da igreja.
Os santos cultuados pelos congados são os santos pretos, principalmente Santo Agostinho e Santa Efigênia.
Diz a lenda que Ifigênia, depois que virou santa, viu que seus filhos roubados da África sofriam na terra nova, a que chamavam Brasil – onde ela não podia mandar porque era uma santa negra. Então, atravessou os mares e veio ter com Nossa Senhora. Essa recebeu de Santa Efigênia seu manto e prometeu guardar sob ele todos os “homens de cor” que pedissem seu socorro. E, desde então, os negros passaram a orar para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
A imagem de Nossa Senhora minimizava as dores do corpo e as saudades da mãe África. Os negros passaram a usar rosários de contas, e quando os “brancos” perguntavam para quem esses “pretos” rezavam, eles diziam que rezavam para a Santa do Rosário. E, de Perpétuo Socorro, a santa passou a Senhora do Rosário. Deve-se notar, também, que o rosário de contas é usado também por adeptos da umbanda e do candomblé, como proteção contra mau-olhado e quebrando. Os negros apenas adaptaram o uso de seu rosário à Santa católica.
Em várias regiões do país, Nossa Senhora do Rosário é representada como uma santa negra.
Outro santo relacionado com a congada é São Benedito. A mesa livre e farta dos festeiros, dizem os entendidos, é obra de São Benedito. Escravo cozinheiro, São Benedito era “propriedade” de um senhor muito severo e perverso, que vivia à procura de motivos para castigar o pobre cativo. Um dia, esse senhor mandou esvaziarem completamente a cozinha. Depois, mandou chamar Benedito, avisando que naquele dia teria visitas importantes em casa e que, por isso, queria o melhor almoço do mundo. Se Benedito não desse conta do recado,
iria para o tronco e de lá só sairia morto.
Benedito foi levando as panelas vazias para a mesa, rogando a Deus para que o ajudasse. O dono de Benedito, deliciando-se com a expressão de pânico do pobre escravo, já imaginava as chicotadas que seriam dadas no coitado.
Mas, para espanto geral, e maior ainda de Benedito, ao levantar as tampas das panelas sobre a mesa, percebeu-se que elas estavam repletas de uma comida tão cheirosa e suculenta, que o aroma abriu o apetite de todos. Benedito, segundo a lenda, tornou-se santo naquela mesma hora, subindo imediatamente para o céu.
Por esse motivo, na cozinha das casas dos congadeiros, é comum encontrar imagens de São Benedito. Por isso também, depois da refeição feita na casa dos festeiros por ocasião da festa, o capitão da congada chama os congados para as orações de despedida invocando São Benedito, rogando ao santo para que ele sempre proteja aquele lar, não deixando faltar nada àqueles que abriram suas portas para receber os negros da congada. Negros como São Benedito.
A presença de um rei, de uma corte e das “embaixadas” remetem às lutas travadas em território africano ao sons dos tambores. Na África, vários reis perderam sua majestade, diminuídos que foram à condição de escravos. Mas, adorados por seu povo mesmo sendo escravos aqui no Brasil, transformaram-se em “reis do Congo”, que reinavam mas não governavam na nova terra. Restituíasse, assim, o reino perdido na África. A congada, na realidade, é uma transposição imaginária aos tempos de glória que o rei e sua corte desfrutavam em sua terra de origem. A congada reconstrói até mesmo os inimigos do reinado, que mandam embaixadores para negociar com o “rei do Congo”. No ritual, esses inimigos, que representam simbolicamente tanto os rivais nativos africanos quanto os homens brancos escravizadores do povo, querem os territórios do rei, querem a vida do rei e de seu povo. Como há uma ameaça e como há necessidade de se manter o reino, os congadeiros lutam entre si, com seus bastões e espadas, simulando essas lutas ocorridas na África e transportadas de maneira imaginária para a congada, resultando sempre na vitória do “rei do Congo”.
Espadas, capitães, soldados. Tudo faz lembrar as lutas que ocorreram no continente africano e que, com a escravidão, passam a ocorrer também em solo brasileiro. Guerreiros negros lutando entre si e contra os brancos europeus que os queriam tornar escravos.
Esse aprumo de uniformes e o respeito rígido à hierarquia e às figuras reais são uma forma de manter viva a lembrança do tempo em que, na África, os povos negros orgulhavam-se de seu conhecimento e de seu espírito de luta. A congada é o resgate, reflexo da altivez desses homens que, destituídos de sua condição de seres humanos, hoje relegados à condição de cidadãos de segunda categoria, mostrando que, por mais que o corpo se curve, suas raízes, como as raízes de uma árvore, ainda são fortes o bastante para romper o duro chão e, assim, manter viva toda a sua história.
No ritual da congada, o casal real e a corte representam o seu povo frente à Santa. A família real, composta geralmente por um rei, uma rainha e nobres da corte, faz referência à soberania que muitos reis africanos perderam ao chegar ao Brasil na condição de escravos. Na maioria das vezes, o rei coroado é o próprio festeiro da congada. Na casa dos reis, todos aguardam a chegada dos congos para partir rumo à igreja. Os congados colocam-se a serviço de suas majestades: constituem a guarda que tem a honra de conduzir os reis e sua corte real até a igreja da Santa do Rosário. Os congados esmeram-se na passagem pela porta da igreja para avisar à Santa que todos vieram para vê-la e reverenciá-la. Buscam a santa e cantam e dançam para ela, trazendo-a para fora da igreja, quando começa a procissão. Os congos, cumprindo sua obrigação, conduz o casal real de volta à sua casa.


Referência do texto: Tomaz, Laycer Tomaz. Da Senzala à Capela. Brasília. Ed. Universidade de Brasília, 2000, 128p. Resumido por José Geraldo Pereira Baião